Elogio à épica do Futebol.
POR ANDRÉS DEL RIO*
Jorge Luis Borges, escritor argentino, não era amante do futebol. Falava que quando chegava o mundial, ele fugia para lugares onde era impossível que alguém falasse do campeonato. Quando alguém perguntava pelo esporte dominado pela redonda, ele indicava: "O futebol é esteticamente feio. Onze jogadores contra outros onze correrem atrás de uma bola não é especialmente bonito". Tinha um profundo ódio ao futebol. Não somente a ele. "É popular porque a estupidez é popular", sinalava o gênio. Sempre me inquietou esse fato. Um cara do tamanho dele não entender de épica, justamente ele, um dos maiores criadores.
Ontem, 26 de junho, a seleção argentina entrou no mundial. Não pelo jogo, nem pelo gol de Messi. Mas porque se encontrou com a épica. E o sofrimento foi épico. E não só ele. A partida foi um quadro épico completo, barroco.
Na semana prévia ao jogo muita coisa se falou sobre a seleção, das piores coisas. Na era dos adoradores da mentira, a seleção foi fértil alvo criativo. Nada de futebol, muito de fofoca. Os jogadores entraram em campo sob suspeita de uma revolta, a revolução dos jogadores. Disseram que eles tomaram a patronal, o mando. Ninguém sabe a ciência certa do que aconteceu, mas a mística já estava no campo. Claro, liderados pelo o ídolo silencioso, que só sabe falar a língua dos pês.
O dia tinha silhueta de quadro de Caravaggio: um dia barroco com feixes de sol santo que escolhiam o destinatário. E no centro, o guardião da seleção, Maradona, iluminado pelos raios puros, puxando todos os olhares nas suas costas, amenizando os nervos iniciais da infinita torcida argentina. Em alguns momentos não se sabia onde se jogava a partida, na arquibancada ou no campo. As câmeras estavam mais preocupadas pelos movimentos do Diego que do Messi. O símbolo da transferência da épica. Os dois no mesmo espaço tempo, uma herança transmitida ao vivo.
O gol de Lionel teve seu carimbo de genialidade, só pra lembrar que ele não é deste planeta. Ou pelo menos, tem o mesmo passaporte que Diego. Assim, o festejo, com os braços para cima, querendo abraçar o céu e se juntar às mãos do Maradona. Os deuses se encontravam num grito sagrado. A religião multiplica a mística.
Já não havia em campo uma equipe destruída animicamente, senão uma ave fênix que, como Diego, sempre renasce das cinzas. Mas como toda épica, o sentimento não pode ser linear, mas sim tem as formas de uma montanha russa de emoções. Da felicidade do gol à tragédia do empate dos nigerianos. Nesse momento, o time mostrou o melhor e o pior que temos: desespero e determinação. Mascherano se tornou rapidamente na figura de primeiro coadjuvante, com sangue na cara e atitude de prócer. Só lhe faltou o cavalo. Não era o futebol, era a épica.
No espetáculo, a plateia dividia o palco. Os passes errados quase mudavam de direção pela presença da torcida, cuja força do canto parecia influenciar a trajetória da bola. Se Argentina jogava contra Rússia, eles seriam visitantes. Por alguns momentos os cantos de força se misturavam a uivos de sofrimento que doíam até no adversário mais obstinado. Mil vozes se corporizavam numa só, forte, que crescia e emocionava. A épica começava a estar presente também na arquibancada.
Quase no precipício do tempo, o jogador Rojo fez um gol que liberou as frustrações históricas, presentes e futuras. Tudo se mistura. Eu não escolhi gritar o gol. Uma voz descontrolada me tomou desde o centro neural do estomago e, como um parto, viu a luz gritando. Muito tempo mastigando bronca e imponência. Argentina é líder mundial do sofrimento e de governos ruins. Depois do grito, eu, como todo o resto, tinha emagrecido, ficado mais novo, livre, como se a vida fosse mais leve. Só por uma bola que tocou a rede. Todas as texturas dos sentimentos que cabem dentro do corpo de um ser humano estiveram presentes na partida. Um tsunami de emoções que se materializa com um grito liberador.
Nada disso compreendia Borges. Enquanto os jogadores ainda estavam se abraçando, Diego Maradona passou mal, porque até seres de outros planetas não podem lidar facilmente com emoções e sentimentos que o futebol nos proporciona e nos expõe. Alguns falaram que ele teve uma parada cardíaca, procurando fechar perfeitamente a épica em estado puro: a vida da seleção, do novo gênio e a despedida do gênio guardião. Os círculos se fechavam.
Mas ele não morreu e a épica e mística se multiplicaram: Vida, morte, sofrimento, autogestão, revolução, impotência e a felicidade em formato de grito. O juiz decretou o final da partida, mas ninguém deixou seu lugar. Todos, jogadores, torcedores e gênios unidos pelo sentimento épico que a seleção finalmente tinha chegado à Rússia.
O tango, segundo um especialista, é o sentimento triste que se dança. O futebol não é diferente. É um sentimento que se dança. E esse sentimento, sua profundidade e intensidade é proporcional ao tamanho da épica, da mística. Como o tango.
Borges nunca entendeu o popular mesmo tornando-se um. E o futebol não é um esporte na era do entretenimento hipnótico, mas um sentimento geometricamente redondo. E quando esse sentimento tem características específicas, se torna num sentimento épico, místico, único. Como a seleção. E uma seleção que tem um motivo épico, é um time com mística. Mesmo que não seja estético. A estupidez pode ser popular, mas a épica é universal.
*Andrés Del Rio é argentino e professor adjunto de Direitos Humanos da Universidade Federal Fluminense.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/