Santa Cruz não faz milagre: faz gestão
POR INÁCIO FRANÇA*
Os bons resultados do Santa Cruz em campo acontecem simultaneamente à reconstrução do clube, resultado de mudanças profundas na forma como vem sendo gerido.
De 2011 a 2014, período em que voltou a ganhar títulos estaduais e a subir de divisão em divisão, foi também a fase em que os gestores passaram a se preocupar com algo básico: as despesas não poderiam ser maiores do que as escassas receitas de um time que penava na série D.
Enquanto o time subia da D para a série C e, desta, para a B, sempre empurrado pela torcida, uma equipe de advogados tributaristas fazia uma auditoria na milionária dívida do clube. Conseguiram reduzi-la em 2/3, mais de R$ 30 milhões, com a identificação de centenas de prescrições, cobranças indevidas ou em duplicata.
O atual presidente, Alírio Rio Moraes, é exatamente o líder dessa equipe de tributaristas. Seu perfil, por sinal, é bem diferente de um cartola tradicional: é músico, compositor de frevos, intelectual e boêmio assumido, assíduo frequentador de galerias de arte.
Com as dívidas equacionadas, desapareceram do clube os oficiais de justiça que, a cada jogo, traziam ordens de bloqueio das rendas por força de decisões judiciais. Finalmente, o Santa Cruz passou a ter uma contabilidade real, com registro verídico de despesas e receitas. O clube saiu de uma condição de clandestinidade e da informalidade.
Os registros contábeis são apenas uma das faces do processo de institucionalização do clube, que agora conta com fluxos administrativos e financeiros bem definidos, além de uma equipe de diretores profissionais nas áreas administrativa, jurídica, de comunicação e de marketing. Todos recebendo em dia.
No futebol, o clube manteve a lógica da gestão anterior: as contratações e seus respectivos salários são do tamanho do clube. A política do "pé-no-chão" inclui o ídolo Grafite, que tem vencimentos bem abaixo da média que os principais adversários regionais do Santa costumam pagar.
Grafite é um caso a parte no universo dos jogadores profissionais: seus vínculos com o Santa Cruz são duradouros, afetivos quase Mesmo depois de deixar o clube em 2002 e se transformar num astro internacional, nunca deixou de frequentar o Arruda em suas férias. É amigo dos funcionários mais antigos, depois dos treinos costuma jogar partidas de dominó com os vigilantes e chegou a convidar funcionários administrativos para sua festa de aniversário, em março.
Assim que assumiu, em 2015, Moraes investiu pesado na outrora esquecida comunicação do clube. Inicialmente, a intenção foi estabelecer, pela primeira vez, o diálogo com a torcida. As redes sociais foram ativadas, procura-se responder a toas as perguntas e queixas. De 238 mil curtidores em abril de 2015, a página de facebook do Santa Cruz, por exemplo, saltou para 520 mil em maio de 2016, o maior crescimento entre os times de futebol nordestinos.
A política de segurança do clube desafia o senso comum dos dirigentes. Decidiu-se não cair na tentação da atitude demagógica de cobrar repressão contra a violência as organizadas e lavar as mãos para as mortes e depredações. Desde o segundo semestre do ano passado, um grupo de trabalho formado por um advogado, um jornalista e um coronel PM da reserva, mantêm diálogo constante com todas torcidas organizadas.
Este ano, o grupo deu passos inovadores, incluindo nas reuniões as torcidas mais violentas do Sport e do Náutico. Os resultados foram percebidos nos quatro clássicos da semifinal e da decisão do estadual (Santa Cruz x Náutico e Santa Cruz x Sport, respectivamente). As ocorrências policiais caíram praticamente a zero.
Antes da partida Sport x Botafogo, ou seja, sem envolvimento direto do Santa, foi o advogado do clube quem coordenou uma reunião com os rubro-negros e os alvirrubros –aliados das torcidas botafoguenses – para traçar uma estratégia capaz de reduzir danos e evitar a violência. Há o entendimento que se as cenas de batalha campal entre torcedores voltarem a acontecer, todos saem perdendo, incluindo o Santa Cruz, ainda dependente de sua bilheteria.
Além de estabelecer pontes com as organizadas, o clube decidiu quebrar a muralha metafórica que o separa há décadas da comunidade do entorno. Adotando o lema que o Santa Cruz é o "clube da inclusão", a assessoria da presidência estabeleceu diálogo e parcerias com o UNCEF e com ONGs que atuam nos bairros de Água Fria e Campina do Barreto, que fazem parte da unidade de cálculo que possui um dos mais baixos IDHs da Região Metropolitana do Recife: 0,615 contra 0,734 da RMR.
Como parcela significativa da população desses bairros sobrevive graças a atividades informais, entre elas a coleta de lixo, o clube está prestes a implantar um programa de coleta seletiva com a intenção de fazer com o que os resíduos produzidos pela torcida gerem renda para a comunidade. Durante os jogos Santa Cruz x Ceará, Santa Cruz x Náutico, Santa Cruz x Bahia, Santa Cruz x Campinense, Santa Cruz x Sport e, finalmente, Santa Cruz x Vitória-BA, as oito famílias de catadores de lixo mobilizado atuaram na coleta, numa fase de teste do programa.
Além de reduzir o tempo de limpeza do estádio após um jogo médio (público de 30 a 40 mil pessoas) de 96 horas para apenas 24, a iniciativa contribuiu para duplicar a renda familiar dessas pessoas durante o mês de abril.
Hoje, dia 23 de maio, a Caravana dos Esportes do Canal ESPN, do UNICEF e do IEE (ONG criada por Ana Mozer) chega ao bairro da Campina do Barreto, incluído na programação da Caravana graças à insistência da diretoria do Santa Cruz.
*Inácio França é jornalista e gerente de comunicação do Santa Cruz.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/