Uma outra visão pela paz no futebol
POR FELIPE TAVARES PAES LOPES e HELOISA HELENA BALDY DOS REIS*
Baseados nas pesquisas que temos realizado nos últimos anos, gostaríamos de tecer alguns comentários sobre o relatório, de 2005/2006, da chamada "Comissão Paz no Esporte".
Embora reconheçamos sua relevância e lamentemos, profundamente, que apenas uma pequena parte de suas recomendações tenha sido, efetivamente, implementada (aliás, a falta de continuidade de políticas públicas parece ser um problema crônico em nosso país…), não podemos deixar de destacar nossa preocupação com alguns de seus pontos e pressupostos.
Como é de conhecimento público, o referido relatório baseia-se, basicamente, em dois eixos interdependentes: a política da tolerância zero, que legitima um aparelho penal intrusivo e onipresente, e o chamado "modelo inglês" (em especial, o Relatório Taylor).
Em relação à referida política, gostaríamos de destacar que, seguindo as reflexões da jurista, criminóloga e professora Anastassia Tsoukala, entendemos que é preciso ampliar o teto de tolerância em relação a pequenas desordens e não baixá-lo, a fim de não agravá-las ainda mais.
Afinal, embora a maior parte dos torcedores seja pacífica e ordeira, ela tende a reagir negativamente a qualquer forma de desrespeito a ela (como, por exemplo, quando a polícia faz uso excessivo da força).
Esta estratégia já tem sido adotada em algumas partes da Europa e tem sido muito bem-sucedida, como ficou provado na Euro 2000 e na Euro 2004.
Além do mais, vale recordar que, conforme destaca o professor Eric Dunning, nos anos 1980, reduziu-se significativamente a permissividade nos eventos de futebol no Reino Unido, tornando-os mais policiados e normatizados.
No entanto, isto não impediu que ocorressem algumas das maiores tragédias do futebol mundial. Assim, ainda que o relatório da "Comissão Paz no Esporte", acertadamente, insista na criação de uma atmosfera menos belicosa e mais festiva para os eventos de futebol, parece-nos preocupante que ela se baseie na política de tolerância zero.
Em relação ao "modelo britânico", é preciso destacar que, embora o fenômeno do hooliganismo tenha perdido força a partir dos anos 1990, ele ainda existe – especialmente, nos deslocamentos para o exterior, nos pubs e nas divisões de acesso.
Também é preciso destacar que, hoje em dia, o Reino Unido (assim como alguns outros países europeus) adota, conforme nos indica a professora Tsoukala, uma controversa política de gestão do risco, que descarta o princípio da presunção de inocência.
Além do mais, embora os jogos da Premier League ocorram em estádios modernos e seguros, sua atmosfera é bastante fria e pasteurizada e o valor dos ingressos um dos mais altos do mundo.
Diante disto, acreditamos que esses dois modelos não devem ser os principais norteadores do futebol brasileiro.
A nosso ver, existem modelos mais inclusivos, democráticos e eficazes, como o belga e o alemão.
Desde o início da década de 1980, ambos têm investido em medidas educativas e no diálogo com o torcedor – o que tem ajudado a manter uma atmosfera festiva nas arquibancadas.
Obviamente, sabemos que o futebol belga e o alemão não estão isentos de problemas e que suas realidades são bastante diferentes da nossa.
Por isto mesmo, entendemos que, embora eles possam servir de norte, não é possível implementar as medidas que lá foram adotadas sem a devida mediação social e cultural.
De qualquer modo, caso ainda haja dúvida de que o caminho do diálogo é possível de ser seguido aqui na América do Sul, gostaríamos de recordar que a Colômbia também tem apostado nele e tem conseguido resultados bastante positivos.
Esses resultados indicam que, diferentemente do que muitas vezes defendem os meios de comunicação, o diálogo com as torcidas organizadas deve ser fortalecido, e não enfraquecido – desde que, obviamente, ele seja feito de forma pública e democrática, e não de forma clandestina.
Hoje em dia, as torcidas organizadas já possuem entidades como a Federação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (FTORJ) e a Associação Nacional de Torcidas Organizadas (ANATORG), que podem (e devem) servir de interlocutores dessas torcidas com o Poder Público. Interlocução esta que já começa ocorrer, como ficou claro no último seminário de torcidas organizadas promovido pelo Ministério do Esporte, em Belo Horizonte.
Além dos problemas já apontados, preocupa-nos a ausência, no relatório da "Comissão Paz no Esporte", de propostas em relação a outras formas de violências que ocorrem no futebol brasileiro, como a estrutural e a cultural.
Por exemplo, a questão do preço (abusivo) dos ingressos não é colocada como um problema. Tampouco são problematizados os horários impostos pela televisão nas noites do meio de semana, que dificultam e tornam mais insegura a volta do torcedor para casa.
São igualmente deixadas de lado propostas que poderiam ensejar uma transformação cultural mais profunda. Menciona-se apenas, de forma bastante vaga, a necessidade de realização de campanhas que possam convencer a sociedade civil a integrar-se ativamente em uma forma menos violenta de torcer e a de realização de programas de conscientização das crianças sobre a importância da convivência entre contrários. Este ponto, todavia, é crucial, e tem de ser muito melhor discutido e detalhado. Não basta, por exemplo, a exibição de algumas faixas e publicidades contra a violência. Para que haja uma transformação cultural profunda, é preciso que seja realizado um acompanhamento socioassistencial regular dos jovens torcedores, tal como é realizado na Alemanha, nos chamados Fan Projekts.
Também nos preocupa a falta de propostas para a redução da violência policial – um dos principais problemas dos eventos de futebol. A nosso ver, é insuficiente advogar a "especialização" da polícia, pois é preciso responder, claramente, como fazê-la. Afinal, num contexto militarizado, torna-se particularmente difícil a construção de uma polícia respeitadora dos direitos democráticos do torcedor. Além disto, nos preocupa a falta de discussão sobre medidas que possam modificar o tratamento midiático dispensado ao tema da violência no futebol. Afinal, tal tratamento, frequentemente, estigmatiza determinados grupos de torcedores e dramatiza o jogo, colocando mais "lenha na fogueira".
Por último, gostaríamos destacar que, obviamente, o futebol não é uma ilha dentro da sociedade e, sendo o Brasil um país, infelizmente, marcado por altos índices de criminalidade, sabemos da dificuldade e complexidade de se construir políticas eficazes de prevenção da violência. No entanto, embora não haja medidas miraculosas, a busca por soluções para o problema não pode ser deixada de lado. Soluções que só poderão ser consideradas justas e merecedoras de apoio se houver um amplo debate público e democrático sobre elas, envolvendo os mais diferentes atores. Afinal, a falta de diálogo, sobretudo com os setores habitualmente excluídos das posições de poder, também é uma forma brutal de violência.
*Os professores doutores Felipe Tavares Paes Lopes e Heloisa Helena Baldy dos Reis são pesquisadores do tema da violência relacionada ao futebol na Unicamp.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/