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Blog do Juca Kfouri

O trabalho remunerado e a hipocrisia dos nossos resistentes clubes-associações

Juca Kfouri

08/09/2014 12h34

POR JOSÉ FRANCISCO C. MANSSUR*

A origem latina do termo "trabalho" remete a castigo, tortura.

A evolução das relações sociais ao longo da História, todavia, serviu para mudar radicalmente tal conotação.

Já na Idade Média, o trabalho remunerado já era visto como instrumento de libertação, sendo elemento a diferenciar a condição do chamado "homem livre", àquela do escravo.

Com sua obra "A ética protestante e o espírito do capitalismo", Max Weber demonstrou que a adoção plena de uma "cultura capitalista" passava pela libertação do sentimento de culpa em face da acumulação de bens e recursos, o que, sendo absorvido pelas religiões protestantes, acabava por estimular o trabalho remunerado como indutor do desenvolvimento latente de nações como, o exemplo mais presente, os Estados Unidos.

É curioso notar que, tantos séculos passados, nossos clubes, sendo as entidades de que realizam a prática dos nossos esportes mais populares, ainda vivam à margem de tal evolução histórica, com seus dirigentes lutando com todas as forças para manterem suas entidades presas a "uma era toda própria", única, exclusiva, como se fosse possível, a quem quer que seja, interromper o curso dos eventos e evitar a inexorável passagem do tempo.

Para tanto, insistem, muitos dos nossos cartolas, em realizar grandes esforços para manterem os clubes que chamam de "seus" exatamente na mesma forma de organização adotada no tempo em que Charles Muller apareceu com a bola em nosso País, o chamado "clube-associação".

A forma das associações, assim definida como reunião de pessoas para realização de atividades de caráter, eminentemente, não econômico, não permitiria, em regra, a remuneração dos seus dirigentes, o que implica a permanência de "voluntários" ocupando cargos de gestão.

Para impedir a evolução natural, grande maioria dos nossos dirigentes esportivos não relutam fazer acrobacias, inclusive constitucionais, acionando seus lobistas junto aos Poderes Públicos para impedir que o Estado faça o relógio correr, determinando que nossos clubes adotem formas de organização condizentes com o volume dos recursos que movimentam hoje em dia.

E mesmo que leis recentes venham permitir a remuneração de dirigentes nas associações, tais normas só servem para aumentar o paradoxo entre a exigência de profissionalismo vis a vi a resistência em manter a forma amadora de organização. Sem que se possa ignorar, inclusive, o obstáculo cultural detalhado a seguir.

Cada vez menos, mais ainda presente como resultado dessa corrida para se manter atrasado, o trabalho remunerado nos cargos diretivos dos clubes – que chamamos de "nossos" – é, no mais das vezes, malvisto, porque tido como algo feito por pessoas menos importantes, menos relevantes, menores, enfim, do que aquela figura do dirigente voluntário, o "abnegado", que dedica parte do seu tempo e da convivência com seus familiares para ajudar a gerir clubes, o que fazem geralmente à noite, ou em seus dias de folga, como se instituições, algumas, no futebol, com receitas anuais de R$ 200, R$ 300 milhões, pudessem ser bem geridas, se administradas dessa forma.

Veja como esse raciocínio remete ao sistema feudal, onde o nobre era o dono da terra, que nela não colocava as mãos, se percebia como superior na hierarquia social ao "reles trabalhador".

Note como, no Brasil, nossos clubes adotam a lógica dos antigos barões do café, aqui em São Paulo, chamados de "Quatrocentões", para quem, em regra, a riqueza era uma decorrência natural, vinda de berço, em contrapartida ao trabalho que, como forma de sobrevivência era tratado como indigno de ser realizado por nobres.

Perceba como acabaram as famílias daqueles que se mantiveram fieis a esse tipo de postura nas últimas décadas e seja capaz de prever o futuro dos nossos clubes.

Ou, melhor, descubra porque nossos clubes estão como estão já no presente.

É possível acreditar que haja dirigentes voluntários que realmente façam esse tipo de atividade apenas por amor e o mais puro desprendimento? Sim, é possível, deve haver vários assim, em diversos clubes, e negar esse fato seria partir para uma radicalização que em nada contribui para a boa discussão.

Porém, é impossível imaginar que esse sistema não estimule a presença de falsos abnegados, pessoas que se apresentam como "pseudo-voluntários" aos clubes, mas que, na verdade, pretendem mesmo é se locupletar, seja na forma mais direta, se apropriando de dinheiro que não lhe pertence, seja indiretamente, angariando posições melhores na sociedade, explorando a paixão de milhões para obter reconhecimento público, privilégios, favores, melhores colocações em sua vida profissional, ou mesmo para massagear seu ego e satisfazer sua vaidade.

É por isso que se diz por aí que dirigente de clube, em nosso sistema, tem que ser "aposentado", "rico de família" ou "ladrão". O que, mesmo remetendo à forma de generalização que condenamos acima, trata de uma percepção coletiva altamente compreensível.

Com efeito, nesse sistema, estão os clubes alijados de contarem com as melhores cabeças – e os melhores caracteres – no momento em que estão no ápice de sua capacidade produtiva.

Só poderia dar no que tem dado. Nenhum profissional bem posicionado, por mais que tenha o mesmo amor pelo clube que diz ter o "dirigente abnegado", quer, ou precisa, ser vítima de olhares tortos e narizes empinados, somente porque se propõe, ou só pode, dedicar sua força de trabalho à entidade, em contrapartida ao recebimento de uma remuneração, que pode perfeitamente ser justa, porque pré-estabelecida, correspondente ao trabalho feito, recebida contra a emissão dos documentos legais e recolhimento dos impostos devidos.

Ao mesmo tempo, não são raros os casos nos quais os dirigentes voluntários, ou "amadores", como preferir, muitos deles, fingem disfarçar – quando já não tomados pela mais absoluta desfaçatez – sua culpa e seu remorso por receberem, escondidos, sem emitir nota ou pagar impostos, parrudas e clandestinas comissões pelos negócios realizados, mercê do colossal potencial econômico que nossos clubes, com seus milhões de torcedores, representam. "Afinal, qual o problema de eu ganhar aqui alguma coisinha, já que eu trabalho aqui DE GRAÇA (?!?) há tantos anos, não é?".

É, enfim, a hipocrisia em sua forma mais plena, como sendo "a homenagem que o vício faz à virtude", na lição de François duc de la Rochefoucauld.

*José Francisco C. Manssur é advogado e conselheiro do São Paulo FC.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/