Perna-de-pau
POR LUIZ GUILHERME PIVA
Era o perna-de-pau. Não por ser ruim. Ao contrário, era dos melhores, mesmo jogando com as duas muletas pra manter o equilíbrio. Quando tinha as pernas inteiras, então, era logo escolhido no par-ou-ímpar.
O apelido veio com as muletas, obrigatórias depois de lhe amputarem a perna esquerda do joelho pra baixo.
(Linha do trem, fim da ladeira, a bola despenca, já-vem-maria, rodas e apito, tão cheia de graça, maldito sol, vozes, gritos e guinchos, apitos e rodas, rodas e sangue, lá-vai-fumaça, só se não for, sangue e apito, brasileiro, rodas e apito, nessa hora, rodas e apito, e na hora, rodas e apito, da nossa morte, rodas e apito, amém, rodas e apito, amém, rodas e apito, amém, apito, amém, apito, amém.)
Meses no hospital. Mas voltou, de muletas.
Ficava na meia-direita lá na frente. Quando seu time atacava, corria por trás do beque e pedia. A bola vinha pelo alto, descaindo, ele amortecia no peito do pé, apoiava-se nas muletas e chutava de sem-pulo. Se não fosse gol, levava perigo.
Eis que naquele dia todo o lance se repetia, ele já quase dentro da área, desmarcado, só que a bola veio muito alta, lá em cima, forte, pra desanimar. Mas ele, na corrida, fez o impulso com a perna, saltou, começou a subir, parecia voar, como se tivesse asas e as batesse, pôs os pés nas nuvens, a cabeça subindo, a bola ainda mais acima, indo pro céu.
Foi tudo muito rápido, mas todo mundo viu, boquiabriu, pasmou: com o corpo no ar, subindo, flutuando, ele pôs pra cima e esticou o braço direito e a muleta o máximo que pôde, alcançou a bola quando ela já era quase o par de olhos da lua, amorteceu-a na ponta da muleta como se fosse uma raquete de tênis, veio descendo ao solo domando-a na ponta da perna-de-pau e, pouco antes da aterrissagem, soltou-a à meia-altura e bateu com o peito do pé, no ângulo, o barbante esvoaçando e a bola correndo a emenda da rede até o cantinho de grama lá no fundo enquanto ele pousava de volta, fechava as asas, as recolhia.
O espanto e o silêncio congelaram todos.
Só ele sorria e pulava e girava e balançava a cabeça e batia uma muleta na outra e queria gritar.
Mas sentiu o silêncio, olhou em volta, viu tudo estancado e mudo e parou.
Então ouviu-se o barulho do trem lá embaixo, as rodas e o apito, as rodas e oapito, as rodas eoapito, as rodaseoapito, asrodaseoapito, asrodaseoapito.
E ele sentiu uma navalha rasgando dentro da canela ausente.
Gritou de dor fundindo o som do grito ao do apito.
E sumiu.
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Luiz Guilherme Piva vive nas nuvens.
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