Analfabetismo funcional e respeito à Constituição
POR PAULO DOERING*
Nos últimos vestibulares do País, o que mais tem atrapalhado a turma é a interpretação de textos, a tal terrível tarefa (para muitos) de identificar uma ideia central.
Separar o que é detalhe do essencial.
Assim sendo, não me surpreendi quando vi alguns comentários lançados acerca de recente texto de minha autoria, publicado pelo Juca em seu blog, no qual finalizo lembrando do personagem do Jô Soares, o Don Casqueta, que profetizava o fim da Máfia, se ela se metesse no Brasil.
Utilizando como pano de fundo o tema que envolveu torcedores corinthianos na Bolívia, com a morte do menino Kevin, pretendi, na verdade, fazer uma crítica ao modo de ser brasileiro.
O Corinthians, parte de sua TO, e as relações que se formaram a partir da tragédia (queiram ou não, uma catástrofe) foram o mote desse objetivo.
Aconteceu com o clube Corinthians, com a Gaviões, mas poderia ter sido com a Mancha Verde, com a Independente, com a Popular do Inter, com a Geral do Grêmio, com a Máfia Azul, a Galoucura. Isto é apenas detalhe.
O que importa é o que fizemos, nós os brasileiros (eu me incluí).
E o que devemos fazer (eu pretendo lutar por isto, escrever faz parte), a partir do episódio.
Desrespeitamos as leis, brasileiras e bolivianas.
Alguém tem dúvida? Sinalizadores de marinha em campo de futebol, pode?
Se a versão de autoria contada pelo menor se confirmar, acobertamos uma fuga, ou não?
Obstruímos a realização de justiça, com versões pouco verossímeis. Não?
Alguém acredita que um rapaz pobre teria gasto mesmo mil e duzentas pratas pra comprar sinalizadores importados?
Ele afirmou, para o "Fantástico", que continuou a ver o jogo, tranqüilo. É mesmo?
Imagens de TV local mostram fuga.
Emasculamos as regras do futebol. A disciplina do esporte, idem.
Bom, aí então tudo piorou.
Invocamos o Código de Defesa do Consumidor, e pasmem, até a soberania nacional, o "raio da Constituição" (não imaginam o quanto dói a um advogado falar assim!), para, desprezando a todos os imperativos éticos – e morais – sentar o nosso "engravatado traseiro" no cimento do Pacaembu naquela noite, descumprindo, vergonhosamente, uma penalidade disciplinar desportiva aplicada em favor de nós mesmos.
Sim, senhores, pena aplicada em nosso favor, dos nossos filhos, netos, conhecidos e amigos.
Afinal, queremos mais Kevins???
Querem chorar pelos seus Kevins, meus caros???
Se não sabem, em função de penalidades assim, os ingleses hoje estão livres da barbárie.
Respeito à Constituição. Sabem mesmo o que é respeitar a Constituição do seu país?
É não usá-la por motivo fútil.
É não se dirigir aos tribunais, tomando o seu precioso tempo, para garantir o direito de "chupar um picolé à sombra" ou "sentar o traseiro num estádio de futebol".
Matamos, num campo de futebol.
Infelizmente, aconteceu.
Eu que amo o futebol, não aceito o fato.
Desde os 9 anos vou aos campos, levado pela mão do meu velho pai, já falecido.
Hoje, levo os meus filhos e não quero passar – e que ninguém passe – pelo que sucede com os pais do menino Kevin Espada.
Eu levanto a minha voz.
*Paulo Doering é advogado e auditor do TCE do Rio Grande do Sul.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/