Que fazer?
No "Estado de S.Paulo" de hoje:
UGO GIORGETTI
Tristeza. É o sentimento que se acumula à medida em que chegam as informações sobre o episódio da Bolívia. Tristeza por uma sociedade que enlouquece. Há muito tempo se pressentia isso, não é de hoje que, poetas sobretudo, vem avisando sobre a insanidade generalizada. "Vi as melhores mentes da minha geração, etc, etc."
As melhores mentes e as piores agora se igualam na mesma loucura. Que eu saiba é a primeira vez que se mata num estádio para comemorar. É a primeira vez, que eu saiba, que se mata para celebrar um gol, que se mata por alegria, não por ódio. Alguém agarrou um objeto que já faz parte de sua vida normal, como um pente ou uma carteira, e comemorou. Esse objeto da morte era como sua corneta, ou seu tambor.
A morte já faz parte da coleção de pertences habituais, viaja conosco, vai a passeios, está sempre ali. E entra em ação. Sabemos que fere, que pode matar, mas isso é apenas uma advertência, escrita para não ser lida. Vira só um objeto. Para a coisa ficar mais absurda foi usado para matar um artefato concebido para salvar. Um objeto inventado para resgatar alguém perdido no mar que tem como sua última chance lançar no ar a luz salvadora.
Num filme, que está por aí, As Aventuras de Pi, há uma cena bastante elucidativa, de um menino, da idade do mesmo menino que foi morto no estádio, em pé, no seu minúsculo barco no meio do oceano, usando o sinalizador de forma desesperada na esperança de ser notado por um navio à distância. Ele lança o sinalizador, a luz sobe, sobe, e não se sabe onde vai dar. Avança sem rota definida pelo céu escuro e desaparece.
O sinalizador que atingiu o menino boliviano também saiu sem rota definida pelo estádio, e matou. O que foi pensado para salvar matou. Assim são as conquistas da técnica quando jogadas no meio da nossa loucura, que não sabe identificar nem entender corretamente o que tem nas mãos. Tudo vira arma.
E de absurdo em absurdo chego à seguinte questão: o que deve acontecer para que uma partida seja interrompida? Qual o limite de barbárie, qual a fronteira de humanidade, além da qual um jogo tem que parar? Certamente a morte absurda de um menino não é. Porque o jogo seguiu em frente. Os torcedores estavam perplexos e enfurecidos, mas nãos os dirigentes, não quem comanda os jogos.
São episódios de uma loucura que nos atinge a todos aqui neste país. No resto do mundo também, talvez. Mas o resto do mundo não me interessa, vivo aqui. E vejo com tristeza enorme certas mudanças. Sempre tivemos medo de jogar a Libertadores, de sermos recebidos a pedradas, de sermos agredidos por legiões de fanáticos em campos hostis e perigosos. Agora os perigosos somos nós. Agora nos temem como os novos bárbaros e nos temem até quando os visitamos.
Falava-se da Idade Média, sem razão, que era a idade das trevas. Não era. A idade das trevas está chegando agora.
E se você quer ver, como mais de 21 mil signatários, Marin fora da CBF, entreAQUI.
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