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Blog do Juca Kfouri

Tiro de meta

Juca Kfouri

29/05/2012 21h18

POR LUIZ GUILHERME PIVA*

Quase dois metros, sete arrobas, chapa de caminhão.

Depois da marmita, eram seis bananas e uma caçarola.

Beque central, capitão, batedor de pênalti, falta e tiro de meta.

Era o que ele mais gostava: o tiro de meta. Sem o alvo, com o campo inteiro à frente, sem barreira.

Era um ritual. Do lado da trave, limpava as travas na viga do alambrado. Ajeitava a meia e a caneleira. Esperava o silêncio dos torcedores rarefeitos nos dois degraus de cimento da arquibancada.

Batia o bico da chuteira no chão.

Raspadas de patas e bufos de miúra.

A corrida. Os rastros. A pancada.

Com o tempo, desafiou-se a chutar cada vez mais alto e mais distante.

Campo pequeno, a bola ultrapassava o outro gol e caía na rua de terra, no bambuzal depois da rua, no brejo depois do bambuzal, na fazenda depois do brejo, longe, depois do longe, no longe depois do longe.

Ninguém discutia, ninguém contrariava. Os dois times ficavam olhando.

Ele olhava a bola até ela sumir. Ficava ali, sorrindo, feliz, ausente.

Os outros em silêncio, em suspiros. Se tinham bola reserva, punham no lugar, recomeçavam. Se não, acabava o jogo.

Por isso evitavam o lance. Adversários e colegas de time se esforçavam para só chutar na certeza ou forçar o escanteio, mesmo em bolas perdidas.

O goleiro corria até a bola sem pontaria para tocá-la. O zagueiro chutava pra trás uma que sairia.

Os juízes entraram no pacto. Ninguém mais marcava tiro de meta.

Ele foi se acabrunhando.

Jogando mal.

Perdeu o prazer.

Até que largou o futebol.

Nem vai assistir.

Mas, no trabalho, em cima do caminhão, às vezes pára e fica olhando pro céu uns minutos.

Ausente.

Ninguém sabe o que ele vê.

Mas ele sorri.

*Luiz Guilherme Piva escreve a torto e a direito.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/