Tiro de meta
POR LUIZ GUILHERME PIVA*
Quase dois metros, sete arrobas, chapa de caminhão.
Depois da marmita, eram seis bananas e uma caçarola.
Beque central, capitão, batedor de pênalti, falta e tiro de meta.
Era o que ele mais gostava: o tiro de meta. Sem o alvo, com o campo inteiro à frente, sem barreira.
Era um ritual. Do lado da trave, limpava as travas na viga do alambrado. Ajeitava a meia e a caneleira. Esperava o silêncio dos torcedores rarefeitos nos dois degraus de cimento da arquibancada.
Batia o bico da chuteira no chão.
Raspadas de patas e bufos de miúra.
A corrida. Os rastros. A pancada.
Com o tempo, desafiou-se a chutar cada vez mais alto e mais distante.
Campo pequeno, a bola ultrapassava o outro gol e caía na rua de terra, no bambuzal depois da rua, no brejo depois do bambuzal, na fazenda depois do brejo, longe, depois do longe, no longe depois do longe.
Ninguém discutia, ninguém contrariava. Os dois times ficavam olhando.
Ele olhava a bola até ela sumir. Ficava ali, sorrindo, feliz, ausente.
Os outros em silêncio, em suspiros. Se tinham bola reserva, punham no lugar, recomeçavam. Se não, acabava o jogo.
Por isso evitavam o lance. Adversários e colegas de time se esforçavam para só chutar na certeza ou forçar o escanteio, mesmo em bolas perdidas.
O goleiro corria até a bola sem pontaria para tocá-la. O zagueiro chutava pra trás uma que sairia.
Os juízes entraram no pacto. Ninguém mais marcava tiro de meta.
Ele foi se acabrunhando.
Jogando mal.
Perdeu o prazer.
Até que largou o futebol.
Nem vai assistir.
Mas, no trabalho, em cima do caminhão, às vezes pára e fica olhando pro céu uns minutos.
Ausente.
Ninguém sabe o que ele vê.
Mas ele sorri.
*Luiz Guilherme Piva escreve a torto e a direito.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/