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Blog do Juca Kfouri

O Maraca não é mais nosso

Juca Kfouri

20/04/2011 13h36

Em "O Globo", de hoje.

'Calma que o Brasil é nosso!".

A expressão, mais antiga que o Maracanã ou a euforia do Petróleo, não pode ser mais aplicada ao Estádio Mário Filho.

Ok, ele continua a ser nosso do ponto de vista estatutário.

Mas deixou de sê-lo no seu caráter, seu modo de ser e receber o torcedor.

Desde as estapafúrdias reformas e, mais recentemente, sua demolição (sim, demolição), o Maracanã deixou de ser do Rio, do Brasil, e passou a ser da Fifa, dos patrocinadores, dos padrões exigidos por uma competição internacional.

Nunca mais o torcedor sentirá o cheiro do cimento quente das arquibancadas.

Jamais percorrerá, aos saltos, correndo em todos os sentidos, ao sabor da alegria ou do desespero, o arco de suas escadarias monumentais.

Não se verá novamente o Vasco desfilar dando a volta completa no anel cantando "Vascão, Fogão, Torcida de Irmão".

Agora que está tudo estabelecido, agora que o Iphan abençoou a "solução final" para o patrimônio (sua extinção), cabe ouvir, com distância, o jornalista Pedro Motta Gueiros no belo texto que segue, quando diz que teria sido melhor construir um estádio só para a Copa e fazer uma reforma efetiva, inteligente, no Maracanã, que o transformasse naquilo que ele era: o nosso palco, com maior segurança.

O conjunto da obra talvez saísse mais barato… um estádio Fifa construído do zero consome R$650 milhões (o gigante Soccer City, por exemplo).

As obras do Maracanã ultrapassarão o bilhão. Se contabilizarmos os prejuízos anteriores e a perda de identidade, terá sido o pior negócio da década. Independentemente do desejado sucesso da Copa. (Arnaldo Bloch)

Por PEDRO MOTTA GUEIROS

No slideshow de imagens chocantes que entram pelas janelas abertas do mundo, é difícil separar o real do virtual.

Entre desastres naturais e dramas humanos, o Maracanã em escombros se confunde com mais uma tragédia.

Recriar a realidade dentro do estádio é uma metáfora gasta e perigosa.

De todas as brincadeiras do mundo, o futebol talvez seja apenas a mais séria.

É nesse espaço do lúdico e da fantasia que se fortalecem a identidade e os laços de uma cultura.

Para quem guarda naquele quarteirão entre a Eurico Rabello e Radial Oeste boa parte das melhores memórias afetivas, encontrar o Maracanã como uma boca banguela à espera de um implante traz o desconforto de uma cadeira de dentista.

Na estética elitizada da indústria do entretenimento, o sorriso construído para um mês de Copa do Mundo esconde a cara – às vezes desdentada, às vezes não, mas nossa! – do torcedor brasileiro.

Nada disso será levado em conta daqui a três anos e três meses, quando o dirigível de um dos patrocinadores enviar ao mundo imagens aéreas do estádio lotado para a decisão.

No momento da glória e do êxtase, serão exaltados os acertos da empreitada, a beleza da nova arena e, quiçá, a presença da seleção brasileira em mais uma final (será?).

Mas hoje, as perdas ainda se impõem aos ganhos.

Com a necessidade de refazer toda a cobertura, o orçamento bateu no teto.

Além do gasto de R$1 bilhão na reforma de um estádio que já passara por duas grandes intervenções apenas neste século, há prejuízos concretos e subjetivos a serem contabilizados.

Num momento em que o futebol do Rio tem os últimos dois campeões brasileiros e volta a exercer atração sobre grandes estrelas, a operação não se completa sem que o Rio tenha o seu grande (outrora grande) palco e sua caixa de ressonância.

Na simetria de seus anéis, o estádio funcionava como um dínamo gerador de energia limpa e de ondas sonoras, rítmicas e musicais, que ecoavam pelas suas arquibancadas junto com o sinal radiofônico de tempo e placar no Maraca.

Seja pela questão financeira ou pela transformação do espaço público, não há mais retorno possível desta atmosfera.

Para comportar camarotes, espaços vips e a nova face de megaeventos cada vez mais corporativos, as intervenções vão mexer na forma e no conteúdo simbólico e efetivo do estádio.

É como se, do dia para noite, o carioca fosse privado de ir à praia no lugar que frequenta há anos e ao voltar, três anos depois, não encontrasse mais sua turma, e a areia fosse substituída por cimento.

A transformação começou na preparação para o Mundial de Clubes de 2000, sempre para atender às imposições da Fifa.

No lugar do livre movimento das massas, que fazia o cordão de isolamento dos policiais se deslocar de acordo com a proporção entre as torcidas, chegou o momento de se estabelecer limites, divisórias e uma certa segregação, a começar pelo banimento definitivo da geral.

A partir do ocorrido na Europa, em que a presença de torcedores em pé concorreu para a tragédia de Heysel, nos anos 80, o efeito dominó derrubou não só alambrados, mas a maior parte das outras formas de se ver futebol.

No Maracanã, no entanto, a geral, sempre foi vítima e não responsável pela violência.

As maiores violências registradas no setor mais popular do estádio vinham de cima, dentro dos copos arremessados das arquibancadas.

Com espírito esportivo para se misturar aos rivais e não ver muito mais do que as canelas de seus ídolos, restava ao geraldino o faro para identificar se a bomba era de xixi ou cerveja.

O resto era festa.

Mas resistir é possível.

Julgar uma cultura pelos valores da outra é um atentado à singularidade e até à soberania de cada região.

Na Alemanha, o respeito às convenções internacionais não exclui a manutenção das tradições locais.

Para as competições sob organização da confederação europeia, o Westfallen Stadium, em Dortmund, tem 100% de sua audiência sentada em lugares marcados.

Para os jogos da liga nacional, os assentos são removidos para a torcida vibrar à sua maneira, de pé, no embalo e da cerveja e da paixão alemã pelo futebol! Rio de Janeiro?

Mas no Brasil o caminho sem volta leva a um impasse e faz pensar se vale mesmo à pena trocar uma construção de 61 anos por um mês de futebol nos padrões de assepsia impostos pelos donos da festa e seus parceiros comerciais.

Na finalíssima do campeonato de futebol americano quase a totalidade do estádio é bloqueada pelos patrocinadores que oferecem ingressos como forma de premiar seus funcinários.

Na Copa do Mundo de 2014, as agências de viagem e empresas têm prioridade semelhante. Nestes termos, não seria melhor ter feito um estádio novo de acordo com interesses particulares para preservar o bem público com suas características genuínas?

Ponto de fusão da democracia social, o Maracanã não é chamado de templo apenas por força de expressão.

A explosão do gol e da fraternidade no abraço ao torcedor desconhecido era versão esportiva de uma cerimônia religiosa.

Não se mexe no teto da Capela Sistina. Se restaura, quando necessário.

Estar no Maracanã tem, ou tinha, a dimensão do sagrado.

Das primeiras experiências pelas mãos do pai ao gosto de nostalgia do mate espumante, a vida passa num outro slideshow, este de imagens sublimes.

Hoje, o que se vê é uma boca banguela.

Junto com a queda das arquibancadas, implode também parte da alma carioca.

Que o velho gigante, para sempre adormecido, descanse em paz.

Depois de uma destruição, é uma defesa natural do homem tentar transformar o horror em alento.

Além dos escombros e das ilusões perdidas, só nos resta a esperança de que a vida e o Maracanã possam ser melhores daqui para frente.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

Sobre o Autor

Juca Kfouri é formado em Ciências Sociais pela USP. Diretor das revistas Placar (de 1979 a 1995) e da Playboy (1991 a 1994). Comentarista esportivo do SBT (de 1984 a 1987) e da Rede Globo (de 1988 a 1994). Participou do programa Cartão Verde, da Rede Cultura, entre 1995 e 2000 e apresentou o Bola na Rede, na RedeTV, entre 2000 e 2002. Voltou ao Cartão Verde em 2003, onde ficou até 2005. Apresentou o programa de entrevistas na rede CNT, Juca Kfouri ao vivo, entre 1996 e 1999 e foi colaborador da ESPN-Brasil entre 2005 e 2019. Colunista de futebol de “O Globo” entre 1989 e 1991 e apresentador, de 2000 até 2010, do programa CBN EC, na rede CBN de rádio. Foi colunista da Folha de S.Paulo entre 1995 e 1999, quando foi para o diário Lance!, onde ficou até voltar, em 2005, para a Folha, onde permanece com sua coluna três vezes por semana. Apresenta, também, o programa Entre Vistas, na TVT, desde janeiro de 2018.

Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/