Atenção: textos de mais de 50 anos atrás...
Sou mestrando em História Social e tenho pesquisado algumas revistas da década de 1950.
Minha pesquisa não está relacionada com futebol ou esporte, mas como fã de futebol tenho "colecionado" cópias digitalizadas de alguns artigos sobre futebol que encontro nas revistas.
Foi na pesquisa, lendo a revista O Cruzeiro de 1958, que encontrei um artigo assinado por Jorge Ferreira no qual ele critica duramente o Campeonato Paulista de 1958 com 20 times além de revelar articulações políticas de bastidores que acabavam comprometendo o próprio futebol.
Nada mais atual, nada mais presente do que agora, quando se discute direitos de transmissão visivelmente relacionados a interesses que não são os interesses do esporte, o futebol, como todo. Mas interesses que comprometem o futebol do campo de forma negativa.
Também me surpreendeu, embora se considere essa época como a fase de outro do esporte, o jornalista fala de falta de qualidade técnica nos jogos devido a inflação de clubes.
Enfim, achei este texto delicioso e em cada fragmento eu consigo encontrar semelhanças com as práticas atuais do futebol.
Destaque especial para a fala do jovem Pelé, no fim do texto, e como ele tem a consciência que a saturação de jogos poderiam acabar com sua carreira.
Por isso envio o texto para você, caso se interesse em publicá-lo no Blog, e para mostrar que a forma de fazer política no esporte não mudou muito.
Pensar nas práticas do passado é, no fundo, pensar as nossas própria práticas.
Thiago de Mello Genaro
Campeonato de 58: Sepultura do futebol paulista
Texto de Jorge Ferreira para O Cruzeiro de 6 de setembro de 1958.
O futebol de São Paulo entra em agonia.
A Federação Paulista de Futebol, servindo hoje de trampolim para a obtenção ou consolidação de posições políticas, é mais um viveiro eleitoral do que propriamente entidade que tem sobre os ombros a responsabilidade de zelar pela organização e pelos legítimos interesses do "association" bandeirante.
A irresponsabilidade de sua presidência, o comodismo, a ação ou omissão dos seus filiados de maior prestígio – as direções dos chamados "grandes clubes", que são o Corinthians, o Palmeiras, a Portuguesa de Desportos, o Santos e o São Paulo F.C. – acabaram por conduzir o futebol do Planalto a uma situação dramática, da qual é ponto culminante esse estúpido e incompreensível e criminoso campeonato 58, disputado por 20 times num prazo de seis meses.
O resultado é que o público se enfada com uma interminável e enfadonha sucessão de jogos (disputados as quartas, quintas, sábados e domingos), dos quais a maioria são de uma mediocridade enervante;
os jogadores são submetidos a um regime cruel, desumano e intolerável, transformados que foram em autênticas máquinas de disputas atléticas e em pobres prisioneiros de concentrações;
a técnica foi banida já que as equipes não dispõem de tempo necessário para treinos coletivos, onde corrigem falhas individuais ou de conjunto; os departamentos médicos dos clubes assemelham-se a hospitais, onde os craques contundidos são remendados às pressas, já que também não sobra tempo aos médicos para recuperá-los integralmente;
as finanças desses mesmos clubes vão a garra, pois as rendas são ínfimas na maioria dos jogos e as folhas de pagamentos de salários e de prêmios correm em espiral inflacionária;
a renovação de valores atléticos passou a ser uma mentira, e meninos portadores de excelentes qualidades não podem ser burilados pois mal surgem e são lançados na "fogueira", queimando-se e comprometendo-se nesse delírio que é o certame paulista.
E a moral desse campeonato caiu aos seus limites extremos: tornou-se corriqueira, no noticiário esportivo da imprensa de São Paulo, a palavra "suborno" – suborno de juízes e jogadores e até de dirigentes.
Que fazem os responsáveis pelos clubes – que afinal é quem sustentam a Federação Paulista de Futebol – que não exigem que o Sr. João Mendonça Falcão, que é o grande responsável por essa situação, novas diretrizes pelo futebol de São Paulo?
Por que dele não exigem a sua própria renúncia a um cargo para o qual sempre revelou ausência de virtudes?
Por que não fazem a "operação limpeza" do futebol que já foi o mais organizado do País, e acabam de vez com a sucessão de escândalos, com esse regime de "chacrinhas", de compadrismo, de imoralidade?
A Tragédia que o futebol de São Paulo está vivendo acabará comprometendo o próprio futebol brasileiro.
As mais expressivas figuras do futebol paulista, pronunciando-se através de O CRUZEIRO, condenam o campeonato de 58, disputado em São Paulo por 20 clubes.
Paulo Machado de Carvalho, o grande dirigente da seleção nacional que ganhou a "Copa do Mundo", disse-nos:
– Vinte clubes são demais. E campeonato com 20 clubes, disputado em 6 meses é calamitoso.
Vicente Feola, técnico campeão mundial de 1958 com a Seleção Brasileira, foi incisivo:
– Nas condições atuais, sou visceralmente contra campeonatos com 20 clubes.
O número é excessivo e o calendário da F.P.F. é exprimido.
Temos, em seqüência, um jogo em cima do outro com os cubes disputando até três partidas por semana.
Vejam o que acaba de acontecer com o São Paulo F.C.: jogou domingo contra a Portuguesa de Desportos, quarta-feira contra o Corinthians e no domingo imediato contra o Santos.
Três "clássicos" em 7 dias!
É um absurdo. Em contrapartida, o público vai ficando enfadado e abandona os estádios. A qualidade dos jogos cai, pois não há tempo para se preparar os jogadores, e as equipes ficam desfalcadas. Esse campeonato é desumano.
E as despesas dos clubes aumentam: existem mais concentrações, mais prêmios e as rendas, ao contrário diminuem. É vital a organização urgente do campeonato de São Paulo.
Do contrário os clubes, juntamente com o futebol, irão à falência.
Athié Jorge Coury, presidente do Santos F.C., declarou:
– Sou contra o campeonato paulista com 20 clubes, porque ele quer dizer exaustão em todos os sentidos: cansa os jogadores, cansa os clubes e, o que é pior, cansa o público. Não há quem resista a essa maratona interminável. E se não se sair dessa inconsciência, pondo-se termo a esse enganoso festim de torneios, onde participam 20 agremiações, o futebol paulista caminhará para o mais melancólico dos fins. Que se busque modificar o que ai está, porque o que se verifica no momento não é esporte: é meio de dissolução, de esfacelamento, porque o futebol é muito diferente desse corre-corre que o avilta e o desmoraliza.
Mário Beni, presidente do Palmeiras, falou:
– Sou radicalmente contra o campeonato com 20 clubes, porque a continuar assim, dentro de dois anos uma grande reserva de atletas profissionais de alta classe estará desaparecida, prejudicando o alto nível do futebol brasileiro. Além do mais, com duas partidas semanais que cada clube grande brasileiro. Além do mais, com duas partidas semanais que cada clube grande disputa, não só há desgaste do plantel – com grave prejuízo para o patrimônio do clube – como fica o público saturado, fazendo declinar as rendas e trazendo, como realmente ocorre, para a vida financeira das associações, profundo desequilíbrio nas contas do Departamento Profissional. O Palmeiras, como tenho certeza os demais clubes, está em regime deficitário no seu setor de futebol. Devemos reorganizar o campeonato, que não poderá contar, na minha opinião, com mais de 12 disputantes. A continuar assim, chegaremos à ruína.
O Sr. Alfredo Inácio Trindade, presidente (ao que parece perpétuo) do grande e queridíssimo Corinthians, escapou de uma definição clara face ao problema. Quando lhe perguntamos se era contra um campeonato com 20 clubes, disse:
– Um campeonato com 20 clubes tem os seus lados bons e os seus lados maus. Acredito que na atual situação deveríamos esperar o término do presente certame, quando então teríamos uma experiência melhor que possibilitaria um estudo mais acurado do problema.
– Acha que é necessário reorganizar-se o campeonato?
– É claro que é necessário uma reorganização. Um campeonato com 20 clubes pode ser muito bom, e até viável, se os jogos se realizassem apenas aos sábados e domingos. Os clubes teriam, então, o meio da semana para recuperação física e técnica dos seus jogadores.
– Sugere algo nesse sentido?
– A minha sugestão é a seguinte: esperemos o término do atual campeonato e a F.P.F., com as demais Federações, entraria em contato com a C.B.D. para se roganizar um calendário único. Teríamos assim tempo para disputar os campeonatos regionais com quantos clubes quisesse, e os campeonatos brasileiro, sul-americano, etc.
Medicina Condena o Campeonato
O Dr. Dalzell Freire Gaspar, especializado em medicina esportiva e responsável pelo Departamento Médico do São Paulo F.C., afirmou:
– A disputa do Campeonato Paulista na forma posta em execução este ano, é o coroamento do sistema desordenado que orienta o nosso futebol.
A série interminável de torneios, campeonatos, jogos amistosos, copas, etc., anos após anos, sem períodos racionais de repouso físico e também psíquico conduz o atleta a um estado prematuro de estafa em várias ordens.
O superesforço seguido de um descanso suficiente para a recuperação orgânica e para um ajustamento psicológico é absolutamente indispensável para uma boa produção futura e para que um desgaste ininterrupto não condicione a duração efêmera da vida profissional do atleta.
No entanto, isso não é levado em conta. O período de atividade esportiva vai de janeiro a dezembro, por força de imposição de ordem financeira. Mas se esse é o aspecto usual e obrigatório do futebol brasileiro, onde paradoxalmente o jogador é mantido pelo seu próprio desgaste, tudo piora consideravelmente com a imposição de um campeonato paulista tipo guerra. São jogadores de 20 clubes que se digladiam duas vezes por semana desrespeitando leis humanas e esportivas, atrás de cobiçados pontos e "bichos". Esforço demasiado e descanso deficiente. Impossibilidade de treinamentos e separação quase permanente de convívio familiar. Desinteresse lógico e compreensível por melhores exibições. Estafa física e mental. Sob o ponto de vista médico, este é um campeonato condenado. Estão exterminando com ele o bom futebol paulista. Há um estado de falência financeira, pobreza de espetáculos técnicos e comprometimento das condições físicas dos atletas. Para a prática de esportes, e muito especialmente do futebol, todo o organismo entra em função. Em relação aos músculos, para que se efetue a sua contração que põe diretamente o corpo em movimento, muitas substâncias entram em jogo, transformando o organismo em um laboratório químico em grande atividade. Reações se processam e há formação de elementos tóxicos que precisam ser neutralizados ou eliminados. Para que haja bom estado atlético é necessário que o repouso entre os períodos de atividade seja suficiente para a recuperação integral do tecido muscular. O coração também colabora diretamente na atividade física. Se no estado de repouso ele envia cerca de 8 litros de sangue pro minuto ao organismo, no esforço seu rendimento tem que ser muito maior, chegando a fornecer mais de 30 litros no mesmo espaço de tempo. E o coração submetido a um regime de trabalho exagerado, também necessita de repouso. Incluindo-se ao sistema muscular e à circulação os aparelhos respiratório digestivo e urinário, sem falarmos no sistema nervoso e nos componentes psíquicos que colaboram decisivamente na prática esportiva, pode-se concluir que um atleta está sujeito a um estado de desequilibrio com sérias consequências, atuais ou futuras, se não for submetido a um regime de recuperação integral. O campeonato Paulista é antifisiológico. Muito desgastante, pouco útil para o restabelecimento do equilíbrio orgânico, além de contusões de várias ordens, próprias do futebol. Urge modificar esse estado de coisas, se não quisermos encurtar a vida profissional dos nossos atletas.
Extremos que se tocam
Visceralmente contrários a esse campeonato-suicida, são também os jogadores.
Zizinho, o mais experimentado os craques brasileiros e um dos maiores nomes já surgidos no "association" universal, foi taxativo:
– Esse campeonato é desumano. Tira-nos, até, o direito de conviver com a família. Não rendemos em campo, mas nos esfalfamos. Não treinamos, para corrigir nossas falhas, cansamo-nos e cansamos o público. O nível técnico do jogador é irremediavelmente comprometido. Não há tempo para anda, nem para recuperação física do jogador machucado. Somos, muitas vezes, obrigados a atuar em más condições orgânicas, e se falhamos somos incompreendidos pela torcida, pelos cronistas e prejudicamos o clube. Estou vendo "meninos" com língua de fora. Esquecem-se de que o jogador é feito de carne e osso. Quem, afinal, perde com isso? Nós, o público, as associações e o grande futebol de São Paulo.
Os 18 anos incompletos de Pelé, e o seu assombroso futebol, embasbacaram o mundo. Pois o menino Pelé também condena veementemente o campeonato paulista:
– É uma doidice o que estão fazendo. Ninguém aguenta essa corrida desenfreada. Clube que não tiver um monte de reservas, e reservas bons, vai ser passado para trás. Porque os "pequenos" declararam guerra aos "grandes", e eu, particularmente, tendo sido "caçado" duas vezes por semana. Graças a Deus, não conseguiram ainda me acertar direito, mas pode escrever que se me machucarem, eu não entro em campo enquanto não estiver bom de vez. Sou moço ainda, e não quero me acabar para o futebol tão cedo. E esse campeonato é de acabar com a gente. Estão matando não apenas os jogadores, mas o próprio futebol paulista.
Nota do repórter – Deveriam figurar, neste desfile de depoimentos, as declarações do Sr. João Mendonça Falcão, presidente da Federação Paulista de Futebol. Acontece que ao receber o esquema de nossas perguntas, afirmou que "não era empregado de jornalistas" e que responderia no prazo que bem entendesse. A urgência do assunto não nos permitia, lamentavelmente, esperar pelo bom fígado do Sr. Falcão.
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/










