Uma entrevista com Di Stefano
Por GUSTAVO VILLANI, de Madrid
Só o fato de Alfredo Di Stefano ser presidente de honra do Real Madrid já valeria a pauta.
Mas ele é muito mais do que isso.
Ao chegar à Sala de los Veteranos do estádio Santiago Bernabeu e ser literalmente entrevistado por ele, em constrangedora inversão de papéis, percebi que é uma pessoa rara.
Quis saber quem eu era, o que fazia na Espanha, onde está minha namorada e, para encerrar, me deu conselhos para não sofrer com as diferenças culturais na Europa.
Talvez porque conheceu a vida cigana de jogador de futebol há quase 60 anos, antes de qualquer conceito sobre bloco econômico e contra todos os preconceitos sobre dupla nacionalidade.
Jogou, em ordem cronológica, no River Plate, Huracán (volta para o River), Millionarios, Real Madrid e Espanyol.
Disse ter sido amigo do escorraçado goleiro Barbosa, a quem conheceu numa série de amistosos no Brasil, no final da década de 40.
Fã de Zizinho, elogiou a escola brasileira.
Não se recusou a falar de nada, mas me interrompeu e se mostrou indisposto ao falar de Didi e Pelé.
Em uma dessas ironias da vida, que tiraram de Zico uma conquista de Copa do Mundo, Di Stefano não pôde jogar um Mundial.
Sofreu com o boicote da Argentina em 1950.
Em 54 e 58, já pela seleção espanhola, nem embarcou para Suíça e Suécia.
Em 62, já trintão, estava no Chile, mas machucado.
Aos 40 anos se aposentou, em 1966.
O que falta ao Robinho para jogar o que se espera dele?
Não sei o que faz fora de campo, se treina bem, não gosto de individualizar meus comentários porque sou da mesma profissão. Garoto jovem para se firmar na Europa tem que se adaptar às circunstâncias da vida, dos estádios, dos companheiros, depende de como ele leva tudo isso. Qualidade ele tem. A adaptação não depende do treinador, se o treinador monta um time pra ele ou não. Tem uma frase que diz: "cada maestro tem seu livro", e deve ser respeitada.
Às vésperas da Eurocopa, qual a seleção que mais lhe encanta?
Não há como dizer. Cada seleção tem seu ciclo, sua característica, seja Brasil, Argentina, Itália, Alemanha. Não sei se a Bélgica está um fenômeno ou se a Dinamarca vai voltar à tona. Não dá para prever. Tem jogador que vai a Igreja pedir ajuda divina para ganhar campeonato. Por favor! Outras seleções também pedem ajuda de Deus. Então, lá de cima, ele diz: "vai empatar, com certeza".
Sua biografia se chama "Gracias, Vieja". Qual o porquê do nome?
A mãe para alguns é a número um do mundo, essa que dá a luz, dá carinho, te cria, que faz tudo. Eu valorizo muito a figura feminina. Então estava num café em Barcelona, com os jogadores do Real Madrid, vendo um monumento. Um deles, que estava com sono, brincou: "vou fazer um monumento a uma cama". E o outro disse que faria um monumento à esposa. Eu disse que faria um monumento à bola, porque se não fosse por ela não estaríamos ali, sentados. A história se propagou até chegar a um escultor, que se ofereceu para um trabalho. Comprei. Ele esculpiu o símbolo do River e a menção "gracias, vieja", homenagem que pedi a minha mãe e à bola. (a escultura enfeita o jardim da casa de Di Stefano)
Você saiu de casa, na Argentina, aos 23 anos, quando a palavra globalização nem existia. Como foi?
Houve uma revolução bombástica na América, a Colômbia até separou-se da FIFA. A maioria dos jogadores das equipes pequenas não recebia, ou recebia picado. Nós, os grandes jogadores da época, fizemos uma organização secreta na Argentina, Perón não podia saber. Íamos de clube em clube semeando a idéia da greve. Genial. Depois de alguns anos, em um momento precioso, explodiu a greve que durou seis, oito meses, com argentinos, uruguaios e outros mais. Queríamos defender os jogadores dos times pequenos, ou da segunda divisão. Tinha jogador que recebia um salário a cada quatro meses trabalhados. Saí do River para o Millionarios da Colômbia, assim como muitos outros.
Você acha o jogador brasileiro tão politizado como os argentinos e uruguaios?
Vocês são descendentes de portugueses, certo? É diferente, apesar de sermos todos latinos. Outra: o Brasil é muito grande, em São Paulo tem muitos times, no Rio de Janeiro também, em Belo Horizonte tem dois, Porto Alegre… O importante é que falo de organização, não estou aqui fomentando a rebeldia. Brigávamos pelos direitos, não contra o clube. Se existe um contrato, tem que cumpri-lo.
Alfredo, fale da experiência de jogar por diferentes seleções.
Eu joguei pela Argentina e pela Espanha. Falam da Colômbia, mas eu não joguei pela seleção colombiana. Sou argentino e espanhol, tenho duas nacionalidades. Há um ditado que diz: "uno es de dónde pase, no de donde nace". Você tem que ser torcedor de onde você come. Que te recebam em outro país, tem que estar agradecido. Faz sete anos que já não volto para Argentina, mas quando podia estava lá todas as férias, entre amigos e familiares.
O que espanta é que hoje as pessoas se locomovem com facilidade, mas antes…
Colombo foi a América, e Vespucio também. Um tem que começar, dar início à vida. Eles descobriram a América, e nós descobrimos a Europa, entende? Saí da Argentina e depois da Colômbia por necessidade, foi difícil. Uma ligação telefônica de Bogotá a Buenos Aires demorava 48 horas, às vezes quatro dias. Agora, em 48 segundos se fala com Buenos Aires aqui de Madri. Tudo melhorou.
Notícias da namorada só por carta?
Isso, sim, piorou. As pessoas eram mais letradas, e hoje são mais mecânicas, estão acostumadas com teclado, Internet, essas coisas. Eu tinha que inventar frases para impressionar minha namorada, nada era pronto. Tinha que postar a carta e começar a escrever outra, porque demorava demais para chegar. Tudo pela Rutina. (risos)
Tenho aqui algumas frases de Bobby Charlton e Eusébio. Disseram que Stefano foi o melhor. Just Fontaine acredita que Alfredo e Pelé foram iguais…
Só tem craque aí, hein. Gosto de me sentir parte de um todo, sou um colaborador. Nunca gostei do "eu", de ser capitão, a estrela, ou coisa do tipo. Eu era da equipe, do conjunto. Quem quiser presumir, que presuma, mas eu não gosto da presunção. Cada um fala o que quiser.
Didi dizia que o dono do time, você, o boicotava no Real Madrid.
Eu falo, conto uma história, e ele conta outra história. Para falar de uma pessoa têm que estar os dois presentes. Eu digo uma coisa, você outra e, aí, as coisas se aclaram. Você me pergunta de Didi. Pois digo que aqui Didi foi tratado muito bem. (Pausa) Vou te contar uma coisa: Didi veio a Madrid num inverno do c… e não comprou um casaco. Ponto. Não me pergunte mais.
Falamos, então, de um compatriota que gosta muito de você. Maradona.
Minha relação com Maradona é antiga, o conheço desde que tinha 17, 18 anos e ainda jogava no Argentinos Juniors. Tenho uma história para ilustrá-lo. No Mundial da Argentina fui trabalhar para uma televisão venezuelana. Cheguei a Buenos Aires e logo minha mãe me disse: "Alfredo, esse Menotti não convocou o Maradona. O que você acha? Tem que matar esse homem!" Menotti é meu amigo e me dizia que Diego era muito jovem para jogar um Mundial, apesar do talento que já demonstrava. Tentei acalmar minha mãe, que tinha uns 60 anos e estava uma fera, contando que só conhecia Diego de ouvir falar e que ele nem deveria ser tudo isso. Ela me mediu com os olhos e disparou: "Pois eu vivo aqui, saiba que Diego é o melhor jogador argentino". Por onde Diego passou foi uma figura extraordinária. Agora, digo sempre que as más companhias tiraram dele a possibilidade de ser mais do que é. Eu o quero muito bem, é um grande amigo.
Por falar em Copa do Mundo, dói não ter jogado um Mundial?
Como me vai doer se eu estive no Chile! Fiz gols na classificação da Espanha para jogar o Mundial. Mas tive a lesão nas costas, apesar dos médicos insistirem que era na perna, e perdi tempo na recuperação. Queriam que emagrecesse cinco quilos a todo custo, exageraram na minha preparação e me machuquei. Pelé também se machucou. Ou seja, ao Mundial eu fui, mas não pude jogar por lesão. (Pausa) É a defesa que eu tenho. E outra: não me importa!
Tampouco foi sua culpa a ausência da Argentina na Copa de 50.
Argentina sempre briga com alguém. Por uma coisa ou por outra não foi ao Mundial do Brasil, dirigentes não se organizaram entre eles e faltavam os grandes jogadores que deixaram o país depois daquela greve. Sempre tem um problema "x" na Argentina. Desde que Grondona assumiu, a coisa melhorou um pouco, apesar do êxodo dos jogadores. Vão a França, Itália, Inglaterra, México, aos países escandinavos… É uma sangria. Os públicos argentino e brasileiro estão deslocados. Quem eles podem ver jogar? Os estádios se esvaziam. Têm que pagar a televisão para ver os times europeus. Em vez de torcer para o River, Boca ou Chacarita, torcem para o Milan, Real Madrid e Benfica.
É possível mudar a situação?
Se um jogador na América ganha 100 e aqui ganha 100.000, você mesmo responde. O que faz o jogador? Antes era uma prisão aos clubes, podiam te reter para a vida toda, éramos como escravos. Hoje você só pode estar na Antártida ou no Equador porque as pessoas lutaram pelo direito mundial, que é a liberdade.
Você gosta de políticos, dos dirigentes do futebol?
Os políticos gostam de futebol assim como simpatizamos por alguns deles. Você não pode impedir a um político de ter preferências, isso vem de 10, 11 anos de idade, seja com o Real Madrid, Santos, São Paulo. Portanto, não podemos fazer um torcedor deixar uma equipe porque ele tem um cargo político. O que isso tem a ver? Eu posso ser torcedor de um político e não ser do mesmo partido dele, por exemplo. As pessoas levam a questão sempre para o mau.
Franco não usava o Real Madrid como bandeira?
Não, nem sabia que jogávamos. Sabia, mas pouco. O Real Madrid teve a grande vantagem de ganhar muitas Copas da Europa, e cresceu em prestígio. Nunca presentearam nada ao clube, tudo isso(estádio) foi construído. Pagamos cimento, tijolo, andaime, tudo. O presidente Santiago Bernabeu não era tonto. Contratou Didi do Brasil, Santamaría do Uruguai, eu vim da Colômbia, apesar de ser argentino, enfim, boa parte do mundo sempre torceu pelo Real Madrid. O clube ganhou muito dinheiro em amistosos.
Já agradeceu alguma vez pelo Barça ter desistido de lhe contratar?
O Barça não desistiu, o Barça perdeu a briga com o Real Madrid. Os catalães negociaram com o River, que embolsou o dinheiro, sendo que meu passe já era do Millionarios. O Real Madrid negociou diretamente com o Millionarios e aqui estou. A FIFA tentou aquela medida para apaziguar, mas não deu certo porque, aí, sim, o Barcelona desistiu de me ter. (Di Stefano teria que jogar quatro temporadas na Espanha, duas pelo Real Madrid e outras duas pelo Barcelona)
Cinco Copas da Europa, uma Copa Intercontinental, dois prêmios Bola de Ouro, uma Copa América, artilheiro desde sempre… Faltou algo na carreira?
Não, tenho muita coisa. Reconheço o carinho de todos, sempre foram bons comigo e tentei ser igual. Esse é o resultado, não tenho mais nada a dizer, sou feliz. Sou agradecido a todos os prêmios e, digo sempre, a todos meus companheiros.
Com permissão para imitá-lo, Gracias, Viejo.
Nada, obrigado a todos vocês. Um abraço à torcida brasileira.
O repórter e o gênio
Sobre o Autor
Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/