O que houve com Telê - Parte 1
A reportagem que segue abaixo foi publicada no sítio "nominimo" dois anos atrás.
Foi apurada e escrita pela mais respeitada e premiada repórter da área de Saúde no Brasil, a jornalista Conceição Lemes.
Quem se julgou ofendido a processou e se deu mal, pois ela foi absolvida em todas as instâncias.
Uma tragédia nos prontos-socorros
Conceição Lemes
05.03.2004 | O AVC ou acidente vascular cerebral – mata mais do que infarto do miocárdio em todas as regiões do Brasil e é a maior causa de invalidez após os 60 anos. Não poupa nem um ex-atleta como Telê Santana, que há oito anos convive com as seqüelas de um AVC isquêmico – agravadas pelo atraso em procurar socorro e por erros nos atendimento médico. Apenas em 2000, segundo as últimas estimativas à disposição dos especialistas, o derrame, como é conhecido popularmente o AVC, tirou a vida de 110 mil homens e mulheres no país. Uma pesquisa realizada em prontos-socorros de 77 hospitais públicos e privados da cidade São Paulo ajuda, agora, a jogar luz em parte dessa tragédia, revelando um dado assustador: 98,8% dos plantonistas não atendem de maneira adequada um AVC nas primeiras horas o chamado AVC agudo.
O estudo foi tese de doutoramento do médico Karlo Moreira pela Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Num questionário entregue a 251 médicos dos 77 hospitais, ele apresentou dois casos hipotéticos de AVC isquêmico, o tipo mais comum, e fez a pergunta: como diagnosticaria e trataria cada caso nas primeiras horas, supondo que o hospital tivesse os recursos ideais para o atendimento?
Apenas três médicos 1,2% dos 251 entrevistados – adotaram as condutas diagnósticas e terapêuticas recomendadas para os dois casos; 98,8% optaram por procedimentos contra-indicados ou potencialmente perigosos para, pelo menos, um dos pacientes hipotéticos. Observações importantes: 1. Caso o médico julgasse necessário, era permitida a consulta a livros ou manuais disponíveis no serviço; 2. A maioria dos 77 prontos-socorros apresentava condições suficientes para a assistência básica; 3. Quase 80% dos 251 participantes da pesquisa atendiam mais de dez pacientes com AVC por ano.
"Se o médico não sabe como tratar direito essa emergência na teoria, é muito difícil que a trate certo na prática", avalia Karlo Moreira. E o primeiro atendimento é crucial para o tratamento do AVC agudo. A eventual conduta errada no primeiro atendimento pode causar maior dano cerebral, a piora das seqüelas e aumetar o risco de morte.
"É um alerta seriíssimo", diz, perplexo, o médico Mílton de Arruda Martins, professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). "Embora a pesquisa não permita assegurar que os pacientes estão sendo prejudicados, seus resultados indicam um risco potencial considerável."
Erro grave: baixar a pressão
Os acidentes vasculares cerebrais afetam as artérias que irrigam o cérebro e acontecem repentinamente. Em 20% dos casos, a artéria se rompe, "derramando" sangue dentro da cabeça. É o AVC hemorrágico. Em 80%, um coágulo ou uma placa de gordura entope uma artéria do cérebro, impedindo a chegada de sangue (e oxigênio) à área, o que provoca a morte desse tecido. É o AVC isquêmico, precisamente o alvo da pesquisa feita em São Paulo.
"O erro mais gritante foi dar remédios para baixar a pressão arterial nas primeiras horas do AVC", destaca Karlo Moreira. Num dos casos apresentados por ele, 44% dos médicos recorreram a anti-hipertensivos, embora eles fossem contra-indicados. No outro caso, era preciso diminuir a pressão, o que 94% dos plantonistas fizeram, mas 46% reduziram-na demais ou utilizaram drogas inadequadas. "Isso piora o fluxo de sangue e faz o cérebro sofrer mais", alerta o neurologista e professor Luiz Alberto Bacheschi, presidente da Academia Brasileira de Neurologia.
A hipertensão, ou pressão alta, é o maior fator de risco dos acidentes vasculares cerebrais. Portanto, deve ser tratada rigorosamente para ficar sempre abaixo de 14 (máxima) por 9 (mínima). Exceção: nos quadros de AVC agudo. Nas primeiras 24 a 72 horas, o próprio organismo faz a pressão arterial subir para tentar jogar mais sangue na área obstruída, e, assim, proteger o cérebro. Reduzir a pressão é desfazer esse sistema de defesa e, portanto, diminuir a circulação de sangue, que tende a não ir para as áreas críticas. Para a região central do AVC , totalmente entupida, talvez não mude nada. As zonas em volta, porém, precisam de bastante sangue. A falta de sangue amplia a destruição de tecido cerebral e, por conseguinte, as seqüelas.
Resultado: não é raro um paciente chegar ao pronto-socorro meio paralisado, começar a melhorar até que alguém descobre que a sua pressão arterial está 17 por 10, lhe dá anti-hipertensivo e ele fica hemiplégico. "Muitas vezes, o AVC é tratado de maneira semelhante aos problemas cardiológicos", observa o professor Bacheschi. "É um grande equívoco. O cérebro tem reações particulares, desconhecer os seus detalhes cria problemas graves."
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Colunas na Folha: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/