Uma voz pela liberdade ecoa no estádio da morte
O avião veio do Rio, parou em São Paulo e seguiu para Santiago. Estava bem vazio. A seleção brasileira ia jogar um amistoso contra a chilena, como preparativo para as eliminatórias da Copa de 86. Era maio de 1985, e o Chile ainda vivia sob a feroz ditadura do general Augusto Pinochet.
O jogo seria no estádio Nacional, recentemente reaberto depois de ter servido durante anos como cárcere, palco de tortura e de fuzilamento de presos políticos. No avião, vindo do Rio, encontro João Saldanha, o único. Sento-me ao seu lado, e engatilhamos mil conversas.
João era para ser ouvido. E eu não me cansava de ouvi-lo. Eis que, quando estávamos para pousar, ele bota a mão no meu braço e me diz, paternal, como às vezes gostava de fazer: "Olha aqui. Eu te conheço, e você me conhece. Você sabe que não sou de ter medo de nada, mas vou te avisar: a ditadura aqui não é mole. Eles somem com as pessoas, sejam elas quem forem, venham de onde vierem. Não vá bancar o herói e falar mal desses caras na tv porque eles vão estar ouvindo".
Achei graça e o tranqüilizei. Na noite anterior, ao ir me despedir de meu pai, ouvi dele coisa parecida: "Cuidado lá, filho. Não vá se meter a balão". Eu já tinha três filhos, 35 anos, não era nenhuma criança e tinha razoável experiência política, ex-militante da ALN (grupo de resistência armada à ditadura brasileira) e do Partido Comunista Brasileiro, eterno partido do nosso João Saldanha.
Chegamos ao estádio, o narrador do sbt, Osmar de Oliveira, abre a jornada e me chama para os "primeiros comentários". Sem me dar conta, tamanha a emoção de estar naquele lugar sinistro num momento em que, no Brasil, já vivíamos a reconstrução democrática, engato uma primeira e vou: "O estádio Nacional de Santiago desperta duas sensações antagônicas. Foi aqui que, em 1962, a seleção brasileira liderada por Mané Garrincha ganhou o bicampeonato mundial". E engato uma segunda: "Mas foi aqui também que, em 1973, a ditadura chilena assassinou e prendeu milhares de patriotas que se insurgiram contra o golpe militar que derrubou o presidente socialista, democraticamente eleito, Salvador Allende".
Osmar de Oliveira, para quem Saldanha havia recomendado "Segura esse cara", me olha com olhar de espanto. E engato a terceira: "Aqui morreram patriotas como o compositor Victor Jara, que, antes de ser fuzilado, teve os dedos das mãos quebrados pelos militares chilenos para não poder tocar para os prisioneiros". Por fim, a quarta: "Aqui morreram e estiveram presos muitos exilados brasileiros também". E devolvo a palavra para Osmar.
Nem bem passados dois minutos, ele me cutuca. Na porta de nossa cabine, um cidadão de terno e cara de poucos amigos estaciona com ares de quem vai ficar. E fica até o fim do jogo. E nos acompanha ao jantar, ao hotel e ao aeroporto, às seis da matina do dia seguinte. João Saldanha não falava nada, só me fuzilava com o olhar, mas sem arredar pé de perto de mim o tempo todo.
Ao chegar em São Paulo, quando fui me despedir, ele abriu um sorriso e disse marotamente: "Parabéns. Você é o meu orgulho".
(Extraído do livro "Meninos, eu vi", de Juca Kfouri, editoras DBA/Lance!)
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